sábado, 12 de novembro de 2011

V de Vingança

V de Vingança

Autor do Quadrinho: Allan Moore

Desenhada por David Lloyd

Filme – Diretor: James McTeigue

Análise: BESERRA, Fernando Rocha

Copyleft: (mas) cite a fonte.








De praxe a interpretação de filmes na perspectiva junguiana se dá de forma análoga a uma das formas da interpretação dos sonhos, por vezes, de forma bem mais “selvagem”. Coloca-se em foco a dimensão arquetípica e o considera-se que o filme é uma imagem do processo de individuação de um único sujeito, como se a história do filme focasse um personagem e os outros fossem complexos, arquétipos, que girassem em torno de um núcleo. Ou seja, a aparência promovida é a de um movimento concêntrico, onde se corre o risco de perder a riqueza das próprias relações e da historicidade que se apresentam no fenômeno artístico, ainda mais, no cinema ou nas histórias em quadrinho. Tentei olhar algumas situações por diferentes focos como se cada personagem tivesse, de fato, uma relativa autonomia em relação ao personagem comumente considerado central. Dessa forma, acredito que os conflitos ficam enfatizados de forma mais vivida, além da contribuição para uma perspectiva pluralista.

No filme em questão, uma tentativa de adaptação dos quadrinhos, se passa numa “futura”[1] Inglaterra após uma contaminação viral que matou centenas de milhares de pessoas nos Estados Unidos, o que foi imputado por fascistas ingleses a falta de fé do “povo” daquela “nação”. Com este discurso os fascistas (comandados pelo ditador Adam Sutler, L´État c´est Il) conseguiram atingir o poder e bloquear as relações com os EUA (transformado em Anusmérica), que por conta do vírus deixou de ser uma potência, passando a viver com uma grave “praga”. Sob o pretexto de proteção nacional e utilizando-se do medo da população e dos seus desejos de proteção, a extrema direita de mãos dadas com o clero e com os militares, além de um forte sistema de comunicação de massa, começou um governo de repressão feroz até estabelecer um quase total controle sobre a população. A revolta e a liberdade foram mascaradas, recalcadas, por atos de poder. A opressão foi naturalizada finalmente por uma população passivizada, os carneiros em torno do algoz.

            Neste contexto aparece V, que salva uma jovem que seria atacada por homens do governo (homens-dedo) depois de sair de casa após o toque de recolher. Os homens-dedo ao procurarem estuprá-la são surpreendidos pela figura mascarada codinome “V” que com palavras de um romance de Shakespeare, mais especificamente MacBeth, ataca os oficiais da lei e salva a mulher, Evey (Natalie Portmann). Na cena que se segue “V” começa seus atos de ataque ao establishment, conjuntamente nos níveis literal e simbólico, destruindo uma construção significativa-simbólica da ditadura inglesa. Enfim, após alguns atos de ataque as autoridades estabelecidas, “V” é considerado um terrorista pela mídia, braço direito do Estado, que falseia sua morte para a população, alegando inicialmente a vitória do Estado soberano e das forças do “Bem”. Evey passa a acompanhar V na sua luta contra a ditadura, muito embora, em algumas situações iniciais Evey vacile em relação a sua posição. Evey também numa relação pouco clara em relação a V, por vezes é sua discípula, aluna, quase uma filha e, em outras ocasiões, é como uma amante, chegando a beijar os lábios da máscara de V. De qualquer forma, mesmo Evey se relacionando a anima de V (a partir desta relação, no filme, V se humaniza, lida com seus próprios sentimentos ambíguos enquanto nos quadrinhos esta relação com a anima é menos óbvia e o personagem mais “duro”), também Evey assume seu processo de individuação nesta relação. Na experiência de V para Evey, V constela tanto imagens do “Velho Sábio”, pois é aquele que experiente passa singularmente suas mensagens valiosas, como seu animus que lhe permite o contato com sua menos desenvolvida intuição (Quais as possibilidades de futuro? O que pode vir a ser? Como superar o já dado?) e isso numa sociedade totalitária não é pouca coisa.

            Neste contexto, sobre codinome “V” é projetado, pelas organizações filiadas a ideologia do Estado, o arquétipo da sombra, logo, V a partir do olhar estatal aparece de forma ambígua, tanto causando medo, como sendo utilizando funcionalmente. Podemos dizer que sua imagem é utilizada com fracasso para:

A)    Favorecer o fortalecimento de uma política de terror por parte do Estado para garantir sua auto-manutenção. (a mesma sombra renegada no cristianismo que é condição de possibilidade da doutrina da privatio boni de Agostinho).

B)    O governo inglês poder camuflar diante da população suas falhas sem ter que lidar com seus lados sombrios, sustentando para a população através da imprensa que o Estado é o summum bonum (sumo bem).

É importante que definamos o conceito de sombra. Por sombra entendemos tudo aquilo que é recusado pela pessoa e mantém-se inconsciente, quer dizer, abaixo do limiar da consciência. Desse modo a sombra não necessariamente fala de algo negativo, ela apenas fala do recusado, seja algo que seria extremamente benéfico para o sujeito, para uma coletividade, ou não. Segundo Von Franz:

A sombra não é o todo da personalidade inconsciente: representa qualidades e atributos desconhecidos ou pouco conhecidos do ego – aspectos que pertencem sobretudo à esfera pessoal e que poderia também ser conscientes. Sob certos ângulos a sombra pode, igualmente, consistir de fatores coletivos que brotam de uma fonte situada fora da vida pessoal do indivíduo” (Franz in Jung, 2001, p.168).

Antes de continuar, é necessário esclarecer melhor a origem de V e sua ira. V foi alvo de experiências para a descoberta do vírus e sua cura, que seria utilizada numa guerra, resultado de torturas e campo de concentração, a própria experiência acabou queimando todo corpo de V (talvez possamos refletir aqui sobre um simbolismo de morte-renascimento, muito similar ao mito da fênix) e paradoxalmente lhe fornecendo força e os instrumentos necessários para combater a opressão e a falta de liberdade (tema típico na fenomenologia da cristalização, onde há necessidade de transformação de um sistema ou sujeito cristalizado). Poderíamos mesmo nos alongar neste processo de queima, símbolo bastante pronunciado nas práticas herméticas da alquimia: solutio et coagulatio ou mesmo o fogo leve do banho Maria (cf. Maria Profetissa). Fogo da purificação. Para V o que importa são as idéias. Neste sentido, ele esconde seu rosto para revelar[2] um sentido; a população viveu por tanto tempo mascarada de seus desejos, de seu sentido autentico, de sua liberdade, evitando qualquer transformação e criatividade que passou a sobreviver numa espécie de participation mystique, onde os “Eus” foram mortificados e a população embalada por uma Grande Mãe estatal devoradora[3]. A máscara de V revela um sonho coletivo reprimido de liberdade e põe o terror, a monstruosidade da guerra, a mostra; nesse sentido, aparece outro aspecto de “V”. A projeção do arquétipo do herói. V representa aquele que luta por uma auto-nomia, que enfrenta a tirania de uma Justiça que se deitou nos braços dos “homens de uniforme”. Luta e instiga, mais do que tudo, a liberdade e neste sentido sua ubiqüidade torna-se no filme cada vez mais clara. Podemos pensar aqui na questão da autoridade tomada de forma unilateral e excessiva por parte do governo direitista só poderia gerar, por compensação inconsciente, uma forma de resistência que permitisse uma relação dialética. V promove esta dialética, a função transcendente, na medida em que contém a autoridade, através tanto da projeção popular (como representante e símbolo) e de seus atos práticos, em sua heroicidade e, por outro lado, a depassa[4] ao instigar a própria individuação popular (rouba o fogo dos céus para distribuí-lo).

V ainda se assemelha em seu estilo a outra “forma vazia de conteúdo”, a saber, o arquétipo do trickster. O trickster normalmente é um pregador de peças, que não é mal, mas tem pouca consciência (ex: o embusteiro – coyote – corvo – aranha, cf. Sanford em Mal, o lado sombrio da realidade). De acordo com Jung:

Segundo Paul Radin, o processo civilizatório inicia-se com o ciclo do “trickster”, o que indica a superação situada do estado originário. Os sinais da mais profunda inconsciência vão desaparecendo: em lugar de manifestar-se de modo brutal, cruel, bobo e insensato, o “trickster” começa a fazer coisas úteis e sensatas ao findar o ciclo. (Jung, 2006, p. 261)

No final do filme V morre e nos quadrinhos Evey toma seu lugar apenas para finalização de sua estratégia de destruição do parlamento, o que significa naquele contexto uma integração por parte da população, talvez o principal sujeito da individuação no filme, de sua sombra e do Si-mesmo, especialmente aspectos da autoridade e do arquétipo da totalidade que se constelavam no Centro da cidade, no Parlamento. A sombra aqui pode ser entendida com suas qualidades positivas que estavam ignoradas, como a liberdade de V, a autodeterminação, a coragem e a esperança. A frase de V é bem clara: “O povo não deve temer o governo, mas o governo que deve temer o povo”. O aspecto prometeico de sua realização, de seu ato, tanto de dividir o touro em dois com Zeus (divisão de poder), quanto o roubo do fogo dos céus são uma realidade humana vivenciada há séculos e re-vivida das mais diversas formas no mito, onde existe uma clara semelhança entre o anjo caído Lúcifer, como tentador da saída do inconsciente indiferenciado, e Prometeu. De acordo com Carl Kerényi, citado por Goofman et Joy (p. 25): “o mito, como existe em sua (...) forma primitiva, não é meramente uma história, mas uma realidade vivida”.

Pensamos neste curto espaço-tempo em algumas referencias acerca do processo de individuação. Nós temos, para traçar um panorama:

A)                           O governo inglês que projeta sua sombra sobre V (e sobre as minorias que manda para os campos de concentração), governo este que acaba por ser depassado.

B)                            O próprio V, como condição de possibilidade de uma individuação do povo, de sua singularização (no ato final uma multidão vai em direção ao congresso com a mascara de V e no final todos a tiram, revelando seus rostos), do despertar de sua criatividade e caminhar rumo à sua autonomia. A morte de V é emblemática de uma passagem do “fogo” prometéico e, talvez, de uma conseqüência necessária da hybris.

C)                            Também o caminho de Evey, que num ponto da trama passa por um processo radical de transformação, quando presa pelo próprio V, após pedir para ser liberta de seus medos, é exposta a prisão e torturada por parte de V até que ela, após toda catábasis (descida ao Hades, ao inconsciente, no sentido do encontro de um não-eu que pertence a esfera mais ampla da “personalidade” do sujeito), passe por um retorno (anábasis) ao mundo cotidiano de forma assaz diferenciada, o que deixa de ser medo, neste caso, parece o encontro com uma autenticidade e confiança desaparecidas.

Um filme que se encontra sintonizado no nosso Zeitgeist (espírito da época), onde os movimentos totalitários procuram re-surgir e de fato re-aparecem em muitas partes do globo, por conseguinte, o filme é emblemático da nossa necessidade atual de romper com o status quo e realizarmo-nos como excentricidades, atualizando as inovações da existência. O aforismo de James Joyce é emblemático neste sentido: “O estado é concêntrico, o indivíduo é excêntrico”.



Referências
FRANZ, Marie Louise von. O Processo de Individuação In JUNG, Carl Gustav. (org) O Homem e Seus Símbolos. 19ª impressão, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001; 316p. 85-209-0642-7.
GOFFMAN, Ken, JOY, Dan. Contracultura Através dos Tempos.
JUNG, Carl Gustav. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes. 2006, B. 447p, 85. 326. 2354-9.


[1] - A data é 1997, mas os quadrinhos foram escritos em meados da década de 1980.
[2] - Nas palavras de Jung: “Só uma vida vivida dentro de um determinado espírito vale a pena ser vivida”.
[3] - Observe-se, em analogia, que o “sujeito-sociedade” (ou, nas expressões sartreanas, a totalização sociedade) assim como uma criança numa relação com uma mãe que “incorpora” e se identifica com o arquétipo da Grande Mãe, especificamente com a sua parte “negativa” e devoradora, também a “criança-sociedade” não possui espaços para desenvolver sua autonomia ou emancipar-se senão por um ato radical, normalmente violento. De acordo com Mikail Bakunin “Todo ato destrutivo é também um ato criador”.
[4] - Tomando aqui a dialética junguiana como fundamental em sua formação epistemológica. O verbo depassar vem do francês “dépasser” e Jung, chega a lembrar o alemão Aufheben, que foi o termo que Hegel utilizou para significar tanto a negação como a ultrapassagem (negação da negação como forma de afirmação), transcendência.

Abrindo as Portas - Catabasis!

Não há muito o que introduzir. Crio este blog para que possamos abrir mais um canal da discussão sobre os múltiplos e infinitos temas abordados pela luz – e pela sombra – da psicologia complexa, fundamentada na literatura do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961). Por este viés, procurarmos encabeçar discussões originais ou simplesmente nos meter a besta de comentar textos e artigos de outros autores, utilizando-os, ou criticando-os, para fomentar não apenas o desenvolvimento desta abordagem, mas também para entrar de cabeça, de corpo almado, na querelas culturais e sociais contemporâneas.

            Nada melhor do que começar com temas espinhosos, e será com temas espinhosos que certamente nos embrenharemos, aprofundando os vários estilos: prometéico, triksteriano, vagabundo iluminado, hermético, apolíneo, dionisíaco, descer ao Hades e voltar sorrindo.  Sabe-se que muitos junguianos, a revelia dos ensinamentos de Jung, e de sua herética experiência de individuação, encontram-se confortáveis nas discussões mais genéricas e inócuas. Pretendemos ser tudo, menos um blog que não afete o leitor, que não chame para rixa, para o fascínio, e sempre para a discussão, seja acadêmica, de botequim, da contenda, do afago, ou do mero prazer do onanismo intelectual.

Pintura de Pablo Amaringo